Filipe Leiria: Em seis meses, teremos que discutir novamente a forma de financiar o IPE Saúde

Novo episódio do podcast De Poa debate os impactos e as críticas ao projeto de reestruturação do IPE Saúde com diretor de Comunicação da União Gaúcha

Por

Luís Gomes

luisgomes@sul21.com.br

Filipe Leiria é convidado desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução

Filipe Leiria é convidado desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução

O episódio desta semana do De Poa, podcast do Sul21 em parceria com a Cubo Play, recebe Filipe Leiria, diretor de Comunicação da União Gaúcha em Defesa da Previdência Social e Pública. Leiria conversa com Luís Eduardo Gomes sobre o projeto de reestruturação do IPE Saúde aprovado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul no dia 20 de junho.https://www.youtube.com/embed/bgWUv14KyqU

Durante o programa, ele explica o que muda para os segurados do IPE Saúde com a proposta do governo Eduardo Leite e destaca os motivos pelos quais os servidores públicos do Estado foram contrários a ela. Ele também apresenta os questionamentos da União Gaúcha e do conjunto do funcionalismo à política de ajuste fiscal, que tem resultado em perda nominal de salário aos servidores, indicando que a crise no IPE também pode ser explicada pelo permanente ajuste.

De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.

Confira a seguir alguns trechos da conversa com Filipe Leiria.

Luís Gomes: Filipe, a Assembleia Legislativa aprovou, na semana passada, o projeto de reestruturação do IPE Saúde, que busca cobrir o déficit mensal da instituição. Eu queria começar te pedindo para explicar o que foi aprovado na Assembleia, porque ainda há muito desconhecimento sobre o projeto.

Filipe Leiria: Pois bem, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de reestruturação que pretensamente visa enfrentar a questão estrutural do IPE Saúde. São quatro medidas em especial, todas elas sobretaxando os segurados do sistema e seus dependentes. A primeira delas eleva a alíquota do plano principal do titular, que é o plano que abrange 600 mil dos cerca de 1 milhão de segurados do IPE Saúde, de 3,1% para 3,6%. Para além disso, há uma tabela de referência. Então, ao fazer o cálculo [de sua contribuição], o servidor vai observar essa tabela de referência, que o governo diz ser uma média do que os planos de saúde cobram, e dos dois valores o menor será aquele cobrado para o servidor. Igualmente e de forma inédita, passa a existir uma contribuição por dependente. Até então, os dependentes só tinham contribuições para procedimentos e exames. Agora, passa a ter uma contribuição específica, que também respeita esta regra dessa tabela de referência com base, segundo o governo, numa média de mercado. Para além disso, também há uma ampliação da contribuição na coparticipação de exames e procedimentos, não mais até o limite de 40%, mas até o limite 50%. Para que os ouvintes tenham clareza, se o segurado se dirigia a um prestador de saúde para fazer um exame e ele custava R$ 1.000, esse segurado pagava até R$ 400. Agora, pagará até R$ 500, isso tanto titular, quanto dependente. E, por fim, há uma trava global de 12%. Ou seja, o conjunto das contribuições do titular e do dependente não podem superar 12% da remuneração desse servidor. Essa foi a medida que apareceu na segunda iniciativa encaminhada pelo Poder Executivo para o debate. Então, essas são as quatro principais medidas.

Luís Gomes: Essa trava global inclui a a coparticipação?

Filipe Leiria: Não, ela não inclui a coparticipação. Esse é um tema interessante, porque a coparticipação, atualmente, o segurado se dirige a um prestador de saúde e é cobrado desse segurado a partir da tabele de referência que o IPE fornece aos seus prestadores. Mas essa contribuição não passa por dentro do IPE saúde. Na verdade, o IPE Saúde não tem o pleno conhecimento do que está sendo cobrado e desta relação. Então, a ideia é que agora o projeto também possa avançar nesse sentido. Essas são medidas secundárias, relativas ao projeto que foi aprovado.

Luís Gomes: E por que os servidores públicos estão considerando o projeto como ruim pra categoria e também e sustentável a longo prazo?

Filipe Leiria: Bom, vamos lá. Aqui a gente entra num tema um pouco mais complexo, mas vamos separando as partes que considero relevantes e que aparecem no debate público. Pra gente entender o porquê dessa, eu diria, indignação em relação a esse projeto, nós temos que separar dois grandes grupos de questões. Tem questões que são externas ao IPE Saúde e que vão ter uma transversalidade, vão se relacionar com o que acontece com o IPE Saúde. Aqui, eu estou falando de toda a política fiscal do governo e os impedimentos que vão desembocar, por exemplo, na ausência paritária ou na medida não ter previsto ter uma quebra de paridade em relação à contribuição de servidores.

Luís Gomes: Só para a gente entender, paridade significa que o servidor contribuía e o governo contribuía na mesma medida?

Filipe Leiria: Perfeito, é isso mesmo. E as questões de lógica interna, ou seja do projeto mesmo de IPE. A síntese aqui, na questão do projeto do IPE, é que ele implica numa redução nominal do salário. Ou seja, quando eu tô falando nominal, não é o salário e a perda da inflação, eu estou falando que, para além da perda da inflação, haverá uma redução. Bom, isto porque porque ele se dá com esta ampliação da cobrança do servidor público num cenário onde não se tem recomposição inflacionária nos últimos oito anos, onde as perdas, pelo índice de IPCA, ultrapassam aí 55, 56%. Então, este é um cenário que, para além da questão da discussão de revisão geral anual, ele tem implicações diretas na própria lógica do projeto. No seguinte sentido, o governo do Estado parte do pressuposto que ele vai repassar esse custo para o servidor e não vai ter evasão. Com isso, ele apresentou cálculos de que esta base de segurados permanece a mesma e, portanto, a receita pode ser calculada pegando-se a base de segurados e multiplicando pela receita individual de cada um. O que a gente observa, e contestou durante o debate, é que isso não é verdadeiro, inclusive efetuamos no âmbito da União Gaúcha uma pesquisa para avaliar esta evasão. E nós temos indicativos muito claros de que vai haver uma evasão. Evasão entendida como o segurado ter que sair do sistema porque não tem mais condições de pagar. Aqueles de baixa renda ou até aqueles de renda maior, que vão avaliar que, comparativamente, um plano privado se torna mais atrativo o plano privado.

Bom, com isso, há uma contradição no projeto. Há uma contradição de que aqueles números de receita que o Estado projeta não se confirmarão. Essa é nossa avaliação. Logo, daqui a pouco tempo, passando a vigorar essas novas regras, talvez em seis meses ou menos de um ano, nós tenhamos que estar novamente discutindo a forma de financiar o IPE Saúde. Essa é a principal contradição do projeto. Para além de representar uma redução nominal do salário no período que não há recomposição, também ele se contradiz na forma de financiar o pretenso déficit.

Luís Gomes: A crise no IPE é real, ele tem um déficit, mas também há uma contestação sobre o tamanho deste déficit, não é?

Filipe Leiria: A questão do déficit, o governo ele olha para o passado e projeto para o futuro. Este é um aspecto que a gente considera extremamente relevante, porque tem várias camadas da questão do déficit. Há uma camada que é muito clara, não há reposição de servidores na mesma proporção de um passado, o governo não faz novos concursos públicos e dado que o sistema de financiamento, ou seja, a lei do IPE Saúde tem o pressuposto do princípio da solidariedade, ele depende do ingresso de servidores e de suas remunerações para que ocorra uma receita. Bom, por uma série de questões, que depois a gente pode aprofundar, não há essa reposição de servidores. Isso é um fato. Mas, além disso, o Estado do Rio Grande do Sul é um contumaz inadimplente do sistema, ele fabrica o próprio déficit. Nós temos, pelo menos, quatro exemplos muito claros de momentos e de aspectos que o Estado fez é esta fabricação do déficit. A primeira delas, a gente pode citar, é a questão das retenções das RPVs, requisições de pequenos valores e precatórios, que foram pagos aos seus credores.

Luís Gomes: São valores que o Estado é obrigado em ações judiciais a pagar aos servidores e, justamente por ser uma dívida com os servidores, deveria ser feita uma contribuição do Estado para o IPE Saúde.

Filipe Leiria: Justamente, então esses valores foram retidos desses pagamentos na via judicial a título de IPE Saúde. Isso, se nós pegarmos o período de 2010 a 2021, esses valores estão identificados no relatório da CAGE (Contadoria e Auditoria-Geral do Estado) de 2022, esses valores foram retidos e não foram repassados para o instituto, uma apropriação indébita.

Luís Gomes: Isso dá quanto?

Filipe Leiria: A valores de 31 de dezembro de 2021, segundo relatório da CAGE, em torno de R$ 356 milhões. Então, o Estado não repassou estes valores, com isso o déficit do IPE Saúde também cresceu. O atraso aos prestadores de serviço também cresce. Este é um primeiro aspecto.

Há também os imóveis vinculados ao Fundo de Assistência à Saúde, que era um fundo específico do IPE Saúde, onde o Estado, num primeiro momento, se apropriou dos imóveis, mas ficou na lei do IPE com a obrigação de repassar o valor equivalente à avaliação desses móveis a título de cobertura do déficit do IPE. Novamente, não cumpriu. Nós estamos falando de em torno de 445 imóveis, desses há mais de 150 imóveis que sequer se tem o valor do custo original. Ou seja, não tem como fazer avaliação com os dados atualmente na contabilidade, segundo relatório da CAGE. Para além disso, há um conjunto de imóveis que sequer está com a avaliação atualizada. Por isso que é difícil estimar o valor. Se nós olharmos os valores dos imóveis que estão avaliados ou que têm avaliação defasada, nós chegamos em torno de R$ 180 milhões.

Para além disso, também há aquilo que se chama de paritárias das pensionistas. Assim como há contrapartida, uma relação de um para um, o servidor coloca R$ 1 e o Estado coloca um R$ 1, quando é o caso de pensionista, como não há esse vínculo com o Estado, nós chamamos de paritária em vez de patronal, que é o nome mais comum. Bom, esta paritária, existia uma controvérsia sobre se os demais poderes deveriam repassar e se o próprio Estado deveria repassar em função de não haver este vínculo direto da pensionista com o Estado, e sim do então servidor que gerou a pensão. Bom, isso foi de certa forma pacificado a partir da lei de 2018 e ficou reconhecido que o Estado deve repassar o valor nominal, pelo menos o valor nominal, este não há discussão. O Tribunal de Contas é o exemplo de um órgão que já repassou, mas o Poder Executivo, a Assembleia Legislativa e o Poder Judiciário discutem ainda essa questão, ainda que a lei já tenha consignado. O fato é que, a soma só dessas três medidas, nós estimamos, como há dificuldades dos valores dos dados primários para estimar, aproximadamente em R$ 970 milhões.

Para além disso, há ainda uma quarta medida que diz respeito às próprias patronais, que não raro são repassadas em atraso e sem as devidas correções. Isso aconteceu ao longo de governos. Então, esses quatro elementos influenciam diretamente no déficit e não há qualquer tratamento em relação a eles prospectivamente, ou seja para frente. Nós não estamos livres desses mesmos mecanismos que atuaram pra ampliar o déficit no passado continuarem perpetuando essa lógica pra frente.

Luís Gomes: O governo do Estado aponta que o déficit, em valores de até o final de 2022, era de R$ 36 milhões mensais, o que daria cerca de R$ 440 milhões por ano. Os dados que tu apresentou seriam, mais ou menos, suficientes para cobrir dois anos de déficit, sem falar que algumas dessas questões continuam gerando um passivo do Estado com o IPE Saúde. Eu quero entrar contigo na questão da política permanente de ajuste fiscal, que vem desde o governo Sartori, com redução de salários e cortes de benefícios. Até que ponto o governo vai conseguir manter essas medidas e até que ponto a sociedade sente os reflexos, sendo o IPE uma delas?

Filipe Leiria: É importante essa questão, porque o que nós estamos assistindo num aspecto geral, é importante que os ouvintes tenham presente isso, é a contradição desta lógica fiscal, que tem um fundo de uma lógica neoliberal. No sentido de que o Estado deve evitar gastos, sendo que a economia é altamente interdependente do gasto que o Estado faz. Como isso aparece no IPE Saúde e como isso vai aparecer em outras políticas públicas? Talvez o IPE Saúde seja a primeira que esteja aparecendo, mas nós vamos ver isso ocorrer em outras políticas. No IPE Saúde, toda a discussão da quebra de paridade, aquele valor que o Estado acompanha a contribuição do servidor, tem implicações na política fiscal do Estado, naquilo que ele vai desembolsar. E aí existem algumas travas, entre elas a Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita gastos com pessoal, mas também há uma trava que é o recente Regime de Recuperação Fiscal, que limita os gastos primários, todos aqueles gastos com serviços públicos, por conta da Lei de Teto de Gastos, que está dentro do arcabouço do RRF, ao limite da inflação. Nós temos algumas contradições. Por exemplo, todo mundo sabe que a inflação médica, em qualquer plano privado, é maior que o IPCA. Bom, recentemente, os planos privados pleitearam uma recomposição de 9,74%, quando a inflação chegou a 5% desse ano de 2022. O que isso significa na prática? O IPE vai consumir espaço orçamentário de outras despesas. Então, para o IPE Saúde poder crescer à velocidade maior que o IPCA, outras despesas públicas vão ter que crescer a uma velocidade menor. Então, a gente tá reduzindo de outras políticas públicas porque nós temos inflações diferentes, gastos diferentes, este é um primeiro aspecto.

Para além disso, o Regime de Recuperação Fiscal (RCL) colocou uma trava. Tudo aquilo que o Estado arrecada e que ele pode executar em políticas públicas se chama Receita Corrente Líquida, mas o RRF colocou uma trava na utilização de recursos, que são recursos dos contribuintes, que é o IPCA. A RCL cresce em patamares maiores que a inflação.

Luís Gomes: É inflação mais o crescimento econômico.

Filipe Leiria: Então, a grosso modo, nós estamos dizendo o seguinte: a população não vai se apropriar do crescimento econômico em termos de serviços públicos, é isso que o RRF está dizendo. Uma parte significativa vai ser designada para pagar uma dívida. Isso traz algumas implicações, poderá a RCL do Estado crescer e o limite que ele terá para gastar em políticas públicas, incluindo o IPE Saúde, vai ficar limitado. Então, não é só uma questão de arrecadação, há um limite legal, fiscal. Eu estou falando aqui do ordenador de despesas lá na ponta que vai autorizar um gasto. Se ele ultrapassar esse limite, ele vai receber as sanções que a lei impõe. No caso de agentes políticos, pode se tornar inelegível. Então, é uma amarra bem consistente. Isto faz com que o gasto público não dinamize a economia. Não dinamizando a economia, novamente nós temos uma retração do crescimento e o Estado tem que fazer um novo ajuste. Então, esta é uma lógica contraditória, é uma lógica, como se costuma dizer, pró cíclica, ela reforça a ideia permanente de corte de gastos.

Fonte: Sul 21

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