Teto vintenário chegará aos cinco anos fadigado e já clama por revisão


Por Élida Graziane Pinto

Neste 2021, o novo regime fiscal completará os primeiros cinco anos da sua projetada vigência vintenária. O teto global de despesas primárias para a União foi fixado pela Emenda 95/2016, com garantia apenas de correção monetária pelo IPCA, mas sua continuidade — sobretudo conforme o arranjo concebido inicialmente — está sob intenso questionamento.

A pandemia da Covid-19 explicitou a necessidade de ampliar a ação estatal, no mínimo, nas dimensões sanitária, assistencial, científico-tecnológica e na sustentação da atividade econômica em tempos de calamidade. Diferentemente do pretendido com o novo regime adotado em 2016, a agenda excepcional dada pelo Orçamento de Guerra, ao longo de 2020, foi a de forte expansão do gasto governamental.

É certo que a liberação rápida de consideráveis recursos adicionais para os três níveis da federação evidenciou, ainda mais, o crônico e histórico problema da má qualidade do gasto público no Brasil. Ocorre, contudo, que a baixa eficiência e o trato patrimonialista dos recursos públicos não são privativos dos períodos de abundância.

Acentuar a escassez, a exemplo do que se sucede com o teto e com a fila da vacina nos presentes dias, não garante ontológica e automaticamente equidade e qualidade na gestão dos recursos públicos. Muito antes pelo contrário: a sabedoria popular bem alerta que, sob extrema carência de farinha, há disputa atroz de pirões que tentam se apresentar à frente uns dos outros.

Eis o contexto em que o teto se aproxima de um quarto da sua vigência, sob indisfarçável fadiga. A realidade contemporânea pressiona por maior presença estatal na dinâmica sócio-econômica doméstica e mundial. A isso se soma a constatação fática de que os quase cinco anos de vigência do teto, por si só, não aprimoraram a capacidade governamental de eleger legitimamente prioridades.

Em um balanço parcial e precário, o teto falhou estruturalmente porque prometeu explicitar os conflitos distributivos no orçamento, mas foi incapaz de nos proporcionar execução do orçamento conforme o planejamento setorial das políticas públicas.

Obviamente não basta um limite rígido, sem clara orientação qualitativa do percurso dos gastos públicos. O teto é um limite substantivamente vazio, a despeito da tendência pró-impositividade orçamentária assumida pelas Emendas 86, 100, 102 e 105.

A bem da verdade, desde a crise econômica de 2008, o mundo tem assistido — paulatinamente — à reversão da austeridade como receituário unívoco para a condução da política fiscal.

Como lucidamente apontado por Júlia Braga (em artigo disponível aqui), o teto pretende operar como uma prensa que achata despesas essenciais em serviços de assistência social, saúde e educação, entre outros. É inconcebível imaginar redução do Estado nessas searas, até por força da própria Lei de Wagner, citada por Braga no seguinte excerto:

“Além de mal desenhado juridicamente, o nome ‘teto de gastos’ não caracteriza corretamente o efeito que esta regra impõe. Não se trata de um teto, mas sim de uma prensa que vai achatando a possibilidade do governo em gastar ao longo do tempo. Isso porque a regra impõe uma redução dos gastos do governo como proporção do PIB.
O alemão Adolph Wagner observou a tendência de gastos públicos aumentarem na proporção do PIB como efeito do processo de desenvolvimento econômico. A denominada Lei de Wagner encontra evidência de sua validade na literatura empírica. Estimativas do FMI apontam que, em média, no mundo desenvolvido, essa proporção passou de 20% na década de 1950 para 40% nos anos 1980. Além do processo de urbanização, contou também o fato de o Estado passar a ser demandado a prestar serviços de assistência social, de saúde e de educação, cujos custos de provisão tendem a crescer relativamente aos preços dos bens industriais. A partir da década de 1990 essa proporção parou de crescer, mas oscilou em patamar elevado, entre 40% e 45% do PIB. Não se observa qualquer tipo de redução, como requer a regra do teto de gastos”.

Paradoxal, desse modo, é a pretensão de manter a retomada plena do teto dado pela Emenda 95/2016 para enfrentar a pandemia e gerir seus persistentes efeitos ao longo de 2021, sobretudo quando cerca de 70% da população beneficiária do auxílio emergencial segue sem garantia de qualquer fonte de subsistência alimentar.

Entre 2009 e 2020, ou seja, no intervalo entre a H1N1 e a Covid-19, o Brasil havia perdido 34,5 mil leitos de UTI (como se pode ler aqui). Significa dizer que os leitos de internação no País caíram de 460,92 mil para 426,38 mil no intervalo que separa as duas pandemias. A queda ocorreu em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), onde a redução chegou a 48,53 mil espaços de atendimento. No mesmo período, a rede privada apresentou um salto de cerca de 14 mil leitos, um aumento considerado baixo por especialistas do setor.
(…) A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda um a três leitos de UTI para cada 10 mil habitantes como ideal. Hoje, o SUS tem cerca de um leito para cada 10 mil habitantes (como se pode ler aqui
)”.

Ora, como sustentar adequadamente as demandas por atendimento sanitário e proteção social mínima (renda básica emergencial) sem rever o novo regime fiscal em suas premissas tão contracionistas? Já que o Orçamento de Guerra dado pela Emenda 106/2020 deixou de vigorar em 31 de dezembro, com o final da vigência do Decreto Legislativo nº 6/2020, impõe-se reflexão sobre o próprio regime vintenário dado pela Emenda 95/2016.

Uma interessante proposta de revisão estrutural do teto está contida no Estudo Técnico nº 35/2020, denominado “Efeitos da Reforma da Previdência (EC nº 103/2019) na regra do teto (EC nº 95/2016): proposta de ajuste metodológico no cômputo dos limites”, de autoria dos consultores legislativos Túlio Cambraia, Eugênio Greggianin e Ricardo A. Volpe. Trata-se de Texto para Discussão da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conof) da Câmara dos Deputados, publicado aqui. Sua primordial proposta é excluir do teto as despesas previdenciárias até o limite da respectiva arrecadação vinculada aos regimes de previdência, para que passe a constar ali tão somente o déficit ali verificado. Desse modo, seria minimizado o efeito “prensa” a que Júlia Braga se referia.

Com o antecipado pedido de desculpas pela longa citação a seguir, vale a pena ler os excertos abaixo do Estudo Técnico nº 35/2020 sobre a necessidade de revisão da Emenda 95/2016:

“No que tange ao aperfeiçoamento do texto constitucional, destacamos os seguintes pontos: a) acionamento antecipado das medidas de contenção do aumento de novas despesas obrigatórias; b) revisão do método de correção do limite; e, c) ajuste metodológico das despesas do sistema de previdência.
(..) De fato, para que o novo regime fiscal alcance os objetivos pretendidos, precisa estar acompanhado de medidas e providências a serem acionadas, inclusive, antes de atingido o limite (orçamentário ou financeiro). (…)
Outro ponto em debate diz respeito ao método de correção dos limites (apenas pelo IPCA), cuja revisão ocorrerá somente em 2027. Mesmo que aprovadas as reformas pendentes, e ainda que acionados os gatilhos que impedem novos aumentos, o crescimento (inercial e vegetativo) das atuais despesas obrigatórias acima da inflação continuará impondo contínua redução nas despesas discricionárias, que atingirá níveis cada vez mais críticos.
A manutenção do método de correção atual (IPCA) por tempo longo não é sustentável, pois dificulta ou impede atividades essenciais do Estado.
Ademais, quando se deixa de considerar por longo período os ganhos advindos do crescimento da economia (e da arrecadação), ou mesmo a recomposição de despesas com demanda populacional (crescimento da ordem de 0,8% a.a.), para além do caráter meramente fiscal, passa a norma constitucional a adquirir feição de regra de agenda econômica, limitando progressivamente o papel do estado na economia (investimento) e nas políticas sociais. Mesmo no momento em que os problemas fiscais (resultado primário, taxa de juros etc.) já estiverem equacionados, aspecto que se tornará mais evidente quando o país voltar a crescer.
O ajuste fiscal deve ser complementado ou acompanhado de resultados fiscais advindos da redução de renúncias ou de aumento de receita.
O último ponto relacionado ao debate para aperfeiçoamento do texto da EC nº 95/2016, que será melhor examinado nos itens seguintes deste estudo, relaciona-se à possibilidade de se dar tratamento neutro às despesas com pagamento de benefícios previdenciários em montante equivalente às receitas de contribuições sociais para os regimes de previdência. (…)
A inclusão no teto da totalidade das despesas previdenciárias (e não apenas do déficit) faz com que as demais despesas primárias continuem sendo comprimidas de forma desproporcional, já que as despesas com pagamento de benefícios aumentam mais que a inflação.
(…) A submissão de todas as despesas previdenciárias ao teto, e não apenas daquelas necessárias à cobertura de déficit (receita – despesa), gera distorções na aplicação da regra fiscal.

(…) Na proposta de mudança metodológica, a nova base e os novos limites de despesa primária passam a considerar apenas o déficit previdenciário, que é a variável relevante do ponto de vista do controle do endividamento e do ajuste fiscal”.

O núcleo da proposta da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados para uma cada vez mais premente revisão do teto dialoga, em menor ou maior medida, com a pluralidade de eixos do Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal e do Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal, a que se refere a Lei Complementar 178, de 13 de janeiro de 2021.

É preciso sopesar e equalizar a necessidade de ajuste fiscal com as demandas eleitas como prioridades orçamentárias incomprimíveis, para que não haja descontinuidade na prestação de serviços públicos essenciais.

A previsão de regras mais rigorosas [1] para a elegibilidade de entes subnacionais aos instrumentos de repactuação federativa das suas dívidas com a União, de um lado, convive com o artigo 15 [2] da LC 178/2021, de outro. Tal dispositivo suspendeu até 2022 a exigência de recondução das despesas de pessoal aos respectivos limites da LRF, diferindo — paulatinamente — sua plena correção até 2032.

Comprimir despesas de pessoal para contê-las ao limite proporcional de uma receita corrente líquida impactada pela instável e deprimida realidade econômica é, de fato, desarrazoado no contexto brasileiro atual. Talvez o lapso temporal dado pelo artigo 15 da LC 178/2021 para recondução até 2032 tenha sido longo e até temerário, mas essa é uma dimensão que pode ser revista e aprimorada ao longo do tempo, sobretudo em face dos demais requisitos de ajuste definidos na mesma lei.

Fato é que equalizar regras fiscais para que sejam funcionais e cumpram as finalidades constitucionais é uma demanda premente da realidade pandêmica e do quadro de desafios que a sucederá (desigualdade majorada/transição do mercado de trabalho etc.). Os sinais de desgaste do teto não expressam uma fadiga transitória, mas um mal-estar estrutural que clama reforma urgentemente.

Na ausência das regras excepcionais do Orçamento de Guerra, a sociedade brasileira não pode ser obrigada a suportar uma “prensa fiscal” que lhe obrigue a suportar o intolerável risco de morte por inação sanitária ou por inanição de tantos que dependem da renda básica emergencial para sobreviver à calamidade ainda persistente da Covid-19.

Interditar o debate da revisão do teto, neste momento, é escolher a morte, a pretexto de uma falsa tese de imutabilidade da Emenda 95/2016 (a qual, por sinal, já foi alterada por ocasião da Emenda 102/2019).

É possível conciliar equilíbrio fiscal e máxima eficácia dos direitos fundamentais, mas isso implica diálogo republicano e democrático para uma premente revisão do teto. Infelizmente, contudo, o diálogo tem se revelado algo tão ou mais escasso do que as vacinas na realidade brasileira deste início de 2021…


[1] Cuja síntese mais estruturada pode ser encontrada no rol de medidas de ajuste constante do §1º do artigo 2º da Lei Complementar 159/2017 (aplicável aos Estados e ao DF), conforme a redação que lhe foi dada pela LC 178/2021.

[2] Inteiro teor a seguir transcrito: Artigo 15. O Poder ou órgão cuja despesa total com pessoal ao término do exercício financeiro da publicação desta Lei Complementar estiver acima de seu respectivo limite estabelecido no artigo 20 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, deverá eliminar o excesso à razão de, pelo menos, 10% (dez por cento) a cada exercício a partir de 2023, por meio da adoção, entre outras, das medidas previstas nos arts. 22 e 23 daquela Lei Complementar, de forma a se enquadrar no respectivo limite até o término do exercício de 2032.
§ 1º A inobservância do disposto no caput no prazo fixado sujeita o ente às restrições previstas no § 3º do artigo 23 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.
§ 2º A comprovação acerca do cumprimento da regra de eliminação do excesso de despesas com pessoal prevista no caput deverá ser feita no último quadrimestre de cada exercício, observado o artigo 18 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.
§ 3º Ficam suspensas as contagens de prazo e as disposições do artigo 23 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, no exercício financeiro de publicação desta Lei Complementar.
§ 4º Até o encerramento do prazo a que se refere o caput, será considerado cumprido o disposto no artigo 23 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, pelo Poder ou órgão referido no artigo 20 daquela Lei Complementar que atender ao estabelecido neste artigo”.

Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Revista Consultor Jurídico, 26 de janeiro de 2021, 8h01

Foto capa: Maurício Garcia de Souza/O Globo

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