Crise no IPE Saúde se aprofunda com pressão de hospitais e denúncias de cobrança ‘por fora’

IPE Saúde reconhece dívida de R$ 600 milhões com hospitais, dos quais R$ 150 milhões foram pagos nesta terça-feira

Por Luís Gomes – luisgomes@sul21.com.br

“Estou por fazer uma cirurgia pelo IPE. Mas, ao fazer o acerto das datas e anestesia, para minha surpresa, a secretária do médico disse que preciso pagar ‘uma diferença’. Alguém já passou por uma situação assim?”

A pergunta acima foi feita no dia 29 de maio em um grupo no Facebook voltado para professores da rede estadual de educação. Em poucos dias, foram mais de 100 respostas, a maior parte delas de pessoas que passaram pela mesma situação.

“Sempre fazem isso, o médico me cobrou R$ 4 mil por fora por uma cirurgia no joelho”, diz uma delas. “Eu já precisei pagar diferença também. O médico se negou a dar recibo. Isso acontece muito aqui em Santo Ângelo. Vergonhoso”, diz outra.

Nas últimas semanas, o Sul21 vem produzindo esta reportagem sobre a crise no Instituto de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (IPE Saúde), que tem marcado presença nas manchetes dos principais veículos de imprensa do Estado nos últimos meses. Relatos como o do grupo do Facebook são frequentes, mas é difícil encontrar alguém que queira conversar com a imprensa sobre a situação. O maior temor está relacionado ao fato de que os segurados do IPE, em geral servidores estaduais e seus dependentes e servidores de prefeituras e câmaras municipais, têm receio em contar os seus casos porque seguem se consultando com os profissionais de saúde.

Este é o caso do jornalista Samir Oliveira, assessor parlamentar na Assembleia Legislativa. Samir foi vítima de um assalto em maio de 2018 e, na ocasião, teve o ombro quebrado e precisou passar por uma cirurgia para correção da lesão. Como servidor da Assembleia, ele é segurado do IPE Saúde. Contudo, procurou quatro traumatologistas e nenhum deles aceitou fazer a operação pelo IPE.

“Aí eu tive que fazer com um médico que cobrou R$ 6 mil por tudo (com anestesia incluída). Só não paguei a internação hospitalar e a placa implantada no meu ombro, isso foi pelo IPE”, conta.

Samir diz que resolveu pagar do próprio bolso porque não poderia esperar pela operação, que foi realizada no Hospital São Lucas da PUCRS. O jornalista também explica que “não fica com raiva do médico” porque acredita que a culpa não seja dele, mas do baixo valor repassado pelo IPE. Segundo o médico contou a Samir, ele receberia apenas R$ 400 pela operação.

Denúncias como a de Samir foram feitas durante audiência pública, realizada pela Assembleia Legislativa no dia 12 de maio, para debater a crise no IPE Saúde. Na ocasião, a deputada Luciana Genro (PSOL) pontuou que recebe várias denúncias de servidores relatando as dificuldades em conseguir consultas ou cirurgias em determinadas especialidades, principalmente nos municípios do interior do Estado.  Já o deputado Edegar Pretto (PT) criticou o fato de que a crise no IPE Saúde se aprofunda no momento em que o governo do Estado comemora ter “colocado as contas em dia”. “Ao invés de comemorar um superávit, o governo deveria cuidar de setores que são tão importantes para a vida dos gaúchos”, disse.

A crise atual no IPE

A crise no IPE não é recente. Pode-se dizer que é histórica. Contudo, em março de 2022, ela ganhou destaque quando a Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Saúde do Rio Grande do Sul (Fehosul), que representa os 40 principais hospitais que atendem pacientes do IPE Saúde no Estado, divulgou uma carta alertando sobre a possibilidade do atendimento a conveniados do instituto ser suspenso em razão do atraso nos repasses às entidades. Na ocasião, a dívida superava a casa de R$ 1,1 bilhão.

Nesta terça-feira (31), o IPE Saúde fez um pagamento extraordinária de R$ 150 milhões a hospitais, clínicas e laboratórios como uma medida para reduzir o passivo existente junto aos prestadores.

O anúncio do pagamento foi feito na última quinta-feira (26), data em que também foram publicadas as novas tabelas de valores pagos pelo IPE por medicamentos, diárias e taxas hospitalares.

As medidas, contudo, não aplacaram os questionamentos dos hospitais e, nesta terça, a Fehosul entregou uma notificação ao governador do Estado, Ranolfo Vieira Júnior (PSDB), dando um prazo de 24 horas para que as portarias e comunicados que estabeleceram as tabelas sejam revogados. Caso contrário, as entidades signatárias — 27 hospitais, incluindo Mãe de Deus, Moinhos de Vento, Ernesto Dornelles, São Lucas, Santa Casa e Divina Providência em Porto Alegre — prometem suspender todos os novos atendimentos a conveniados do IPE, mantendo apenas os casos já em tratamento e emergências com risco iminente de vida.

A avaliação da Fehosul é de que, apesar de os valores pagos pelas diárias de internações e taxas de infusão para tratamentos oncológicos do Estado terem sido reajustados positivamente, o valor médio pago pelo IPE aos hospitais por medicamentos caiu em 20,76% a partir da revisão de 437 itens, o que resultaria em uma perda anual de receita na casa dos R$ 60 milhões.

“Os reajustes anunciados pelo Instituto de nenhuma forma compensam as perdas aferidas pela implantação da tabela próprio de medicamentos”, diz a nota. “Tais medidas inviabilizam o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de prestação de serviço que os hospitais mantêm junto ao instituto”, complementa.

No início da noite desta terça, o IPE Saúde informou que agendou uma reunião com a federação para a próxima sexta-feira (3) para tratar da viabilidade econômica-financeira do órgão e disse esperar que o atendimento aos pacientes ocorra normalmente até lá.

“A nova tabela de medicamentos adotada pelo IPE Saúde, foco de contestação por hospitais, são condizentes com as práticas de mercado. O instituto ajustou a valores praticados por outras operadoras. A adoção da tabela própria de medicamentos ocorreu em função de constatação do Ministério Público Estadual de que o IPE pagava mais por determinados itens”, diz a nota.

Recentemente, a reportagem conversou com o presidente do IPE, Bruno Jatene. Ex-subsecretário do Tesouro Estadual, Jatene assumiu o cargo no olho do furacão, em 23 de março, tornando-se o sexto presidente do órgão desde o início da gestão Eduardo Leite. Na conversa, ele destacou que o IPE calculava que possuía um passivo de dívidas acumuladas em torno de R$ 650 milhões. Isso ocorre porque o órgão contabiliza como dívida apenas os valores que estão há mais de 60 dias em atraso, uma vez que este é o prazo do IPE para o pagamento dos prestadores de serviço.

Jatene diz que assumiu o comando do IPE com o objetivo de enfrentar a crise sob três eixos: revisão de despesas, reorganização institucional do próprio órgão e revisão das fontes de financiamento. Ele salienta que o IPE vem aprimorando os processos de auditoria interna e que, a partir da recente adesão do Estado ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), pretende fazer a nomeação de 95 aprovados em concursos para o órgão.

Quanto às receitas, Jatene prefere não adiantar quais medidas poderiam ser tomadas. Em abril, a Comissão de Finanças, Planejamento, Fiscalização e Controle da Assembleia Legislativa aprovou um relatório, elaborado pelo deputado Giuseppe Riesgo (Novo), que recomenda tornar obrigatória a cobrança de dependentes, a reestruturação dos valores pagos pelos segurados por faixa salarial e o aumento da base de contribuição.

Hoje, os servidores estaduais pagam uma alíquota única de 3,1% de seus salários para o convênio com o IPE. O Estado complementa com o mesmo percentual.

O presidente do IPE diz que, antes de rever alíquotas ou qualquer medida que vise aumentar a arrecadação, primeiro espera concluir um estudo “bastante cauteloso” e apurado sobre a diferença entre despesas e receitas do órgão. Contudo, diz que neste estudo está, sim, incluída a possibilidade de revisão das alíquotas.

“Eu não estou dizendo que nós faremos, só para deixar claro, o que eu estou dizendo é que primeiro nós faremos um tema de casa, que é trazer a despesa para um nível aceitável. Esse é o primeiro ponto. Segundo ponto, que ocorre em paralelo ao primeiro, trabalhar o aprimoramento institucional, a parte administrativa, fazer nomeação das pessoas que a gente tem que fazer, inclusive, rever processos, trabalhar em cima das questões envolvendo auditoria e tudo mais. E o terceiro que, a partir da do entendimento de qual é o GAP real dessa diferença entre receita e despesa, é aí atacar algumas fontes de financiamento. Uma delas pode ser ter que revisar alíquota, pode ser ter que revisar contribuição para dependente”, diz. “Esse é um ponto muito sensível e eu gostaria de frisar bastante isso: eu não estou dizendo que vai acontecer, eu estou dizendo que existe uma responsabilidade administrativa de equacionar a despesa para que nós possamos dar esse passo a seguir”, complementa.

Jatene calcula que o déficit mensal do IPE gira, atualmente, em torno de R$ 30 milhões a R$ 40 milhões, com as despesas dependendo de uma série de fatores sazonais, como, por exemplo, o aumento das internações e da procura por hospitais nos meses de inverno para o tratamento de síndromes respiratórias. Com relação às receitas, no entanto, como não há cobrança de coparticipação e as alíquotas são fixas, não há sazonalidade.

Ele destaca que, nos planos que o IPE oferece a servidores de prefeituras e de câmaras de vereadores do Estado, a cobrança é diferente, uma vez que os valores diferem por faixa etária. Essa é uma das medidas que está sendo estudada. Mas, mais uma vez, ressalta que não há nenhuma proposta na mesa atualmente.

“Hoje, a gente tem um foco muito centrado em termos de despesa, embora algumas questões envolvendo fontes de financiamento, nós também estejamos tratando. Mas antecipar essa discussão nesse momento seria uma irresponsabilidade minha, exatamente por não ter feito esse estudo ainda, inclusive para saber a magnitude que teria que se fazer e qual a mudança precisaria fazer”, afirma.

Impacto do congelamento salarial e do ajuste fiscal

Principal grupo entre os 980 mil segurados do IPE Saúde, os servidores públicos denunciam que a crise no órgão não pode ser desvinculada da própria crise econômica pela qual passa o Estado e do ajuste fiscal adotado pelos dois últimos governos para seu enfrentamento.

O Fundo de Assistência em Saúde, que depende diretamente da contribuição dos servidores, do salário, da pensão e da aposentadoria, está congelado há 8 anos porque os salários estão congelados há 8 anos. Neste período, a inflação médica ultrapassou 120%. Como é que essa conta vai fechar? Nunca”, diz Katia Terraciano Moraes, presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Aposentados e Pensionistas do RS (Sinapers).

Kátia destaca ainda que, quando os salários dos servidores atrasaram no governo Sartori, também atrasaram os repasses ao IPE Saúde. “Só com relação ao repasse das pensionistas entre 2015 e 2018, a dívida do Estado com o IPE Saúde é de cerca de R$ 190 milhões e, com os juros, a soma ultrapassa os R$ 500 milhões. O governo não quer reconhecer os juros, não quer pagar essa dívida”, diz.

Para além disso, sindicatos denunciam que receitas que deveriam ser do IPE Saúde estão sendo usadas para o financiamento do Tesouro Estadual. “O Fundo de Assistência à Saúde tinha como reservas imóveis do IPE Saúde, que o Estado se apropriou. Teve, inclusive, uma ação civil pública do Ministério Público questionando essa forma de atuar do Estado. Ele não só se apropriou dos imóveis, como alienou e não repassou para o IPE Saúde”, diz Filipe Leiria, que presidiu até este mês de maio a União Gaúcha em Defesa da Previdência Social Pública, conjunto de entidades de representativas de servidores estaduais criada em 2005, entre outras coisas, para atuar em temas relacionados ao IPE.

O Estado também teria se apropriado de repasses ao IPE nos pagamentos de precatórios e requisições de pequeno valor (RPVs). São valores pagos pelo Estado em decorrência de ações judiciais a servidores, que, quando se tratam de remunerações devidas, tem descontada a alíquota do convênio. “O Tribunal de Justiça autoriza o pagamento, a secretaria da Fazenda retém, mas nós não temos identificado o repasse de contribuição para o IPE Saúde de RPVs e precatórios. É uma grande perda de receita também e nós temos denunciado isso”, diz.

Kátia avalia ainda que o IPE não vive só uma crise financeira, mas uma crise de credibilidade em razão dos constantes atrasos nos valores devidos e que isso também acaba por afetar os servidores. “O segurado não consegue consulta, tem que pagar por fora. Não consegue cirurgia, tem que pagar por fora. Vai fazer um exame, tem que pagar por fora, isso é desumano, é cruel. E aí atrasa tudo, é o efeito dominó na cadeia do atendimento, são as autorizações, as perícias, as auditorias, os reembolsos. Tudo atrasa”, diz.

Se a dívida do IPE com os hospitais ameaça deixar os segurados sem atendimento, a defasagem nos valores pagos pelo órgão aos médicos pelos procedimentos realizados pelo convênio é outro elemento que aprofunda a precarização do atendimento.

Crise com os médicos

Presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Marcos Rovinski explica que os valores não são atualizados desde 2011.

“Só para tu teres ideia, imagina um paciente com pneumonia, um paciente que tem covid, o médico vai ao hospital e ganha por aquela visita diária R$ 25,59. Isso é o que o médico ganha para atender um paciente no hospital pelo IPE. Se tu considerares que tem que pagar 27,5% de Imposto de Renda, esta visita hospitalar vai a R$ 18. Se tu tira o INSS, essa pessoa ganha perto de R$ 15 ou R$ 16 para atender uma pessoa internada pelo IPE em qualquer hospital do Rio Grande do Sul”, diz. Um parto pelo IPE, um momento importante na vida de uma família, o médico vai, fica esperando a criança nascer, normalmente demora bastante tempo, e recebe R$ 336 reais. Tirando o imposto de renda, vai R$ 270. Se for cesárea, a mesma coisa, o mesmo valor, e ele tem que atender essa mulher, ficou várias horas esperando a criança nascer, tem um risco cirúrgico, se houver uma complicação, ele é responsável, fica mais dois ou três dias e recebe este valor. Então, evidentemente que há uma crise no IPE”.

Rovinski diz que a classe médica apresentou ao IPE uma proposta de elevar a tabela de valores pagos aos médicos de imediato para 35% da Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), tabela que serve de parâmetro para consultas realizadas por planos de saúde. Isso significaria, por exemplo, elevar a diária por visitas hospitalares para cerca de R$ 50. A proposta também sugeria a elevação da equiparação com a CBHPM em 5% ao ano até que se chegasse a 80% da tabela de referência.

“O IPE disse que era muito, disse que não tinha condições de pagar R$ 50 para uma visita hospitalar”, afirma Rovinski.

Somado à defasagem, diz o presidente do Simers, ainda há um outro problema, que é a falta de previsibilidade no pagamento do IPE aos profissionais, que frequentemente passaria do prazo oficial de 60 dias. Neste cenário, ele considera que a cobrança por fora denunciada pelos segurados seria uma forma de defesa encontrada pelos médicos.

“Nós não nos envolvemos nesse tipo de situação. Só acho que esses médicos estão fazendo possivelmente um ato, que se não for regular, é um ato de legítima defesa, porque é impossível manter um consultório médico atendendo com esses valores. Então, possivelmente o que os médicos estão fazendo é se defendendo dessa forma. Mas não nós não nos envolvemos na defesa desse tipo de situação, o que nós queremos é que o IPE Saúde remunere adequadamente para que não haja necessidade desse tipo de procedimento por nenhum profissional”, diz.

Bruno Jatene diz que o IPE reconhece que é preciso reajustar o valor pago aos médicos, mas que isso depende do enfrentamento do desequilíbrio entre receitas e despesas. “É algo que tem que ser visto não pontualmente, mas dentro do rol de todas as mudanças que nós vamos fazer”, diz.

Ele pontua que a “cobrança por fora” aos segurados é algo que “acontece em todos os planos”, mas salienta que isso é ilegal e deve ser denunciado formalmente ao IPE e ao Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers). Do ponto de vista do IPE, o médico que cobra por fora pode ser punido com sanções que vão desde repreensão e advertência até a suspensão e o descredenciamento do convênio com o IPE.

Jatene acrescenta ainda que, ao contrário do que muitos segurados relatam, não haveria uma crise de descredenciamentos, isto é, de médicos que deixaram de atender pelo IPE, ao menos não oficialmente. Segundo números disponibilizados pelo órgão, em 2021, 63 médicos pediram o descredenciamento do convênio, enquanto 411 novos aderiram. Da mesma forma, nenhuma clínica ou laboratório pediu o descredenciamento, e apenas um hospital o fez, enquanto houve adesão de 27 novas clínicas, 10 laboratórios e 4 hospitais.

“Embora não haja descredenciamento em massa, há uma situação que precisa ser tratada quanto a prazos de atendimento, de consulta médica. Embora não seja um descredenciamento, os médicos necessariamente, até por uma questão de custo-benefício, também fazem uma avaliação quanto à possibilidade e à quantidade de usuários do IPE que vão atender. Então, não é incomum que você leve um pouco mais de tempo para poder ser atendido como usuário do IPE”, reconhece.

Fonte: Sul 21

Crise no IPE Saúde se aprofunda com pressão de hospitais e denúncias de cobrança ‘por fora’ – Sul 21

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