Fragilizado financeiramente há anos, o IPE-Saúde — plano de assistência médica dos servidores públicos estaduais e seus dependentes — é vítima de uma fraude milionária praticada por instituições médicas. Em Soledade, distante 220 quilômetros de Porto Alegre, um laboratório é suspeito de ter forjado a realização de 17.666 exames entre 2012 e 2017. Os procedimentos não foram efetuados, mas a conta fictícia chegou ao instituto, que fez desembolsos de cerca de R$ 3 milhões em favor do laboratório para quitar serviços jamais prestados.
O suposto golpe no IPE é alvo da Operação Examinação, deflagrada pelo Ministério Público Estadual (MPE) na manhã desta quarta-feira. As autoridades cumprem oito mandados de busca e apreensão em Soledade, alvo principal da ofensiva, Palmeira das Missões e Ibirapuitã. Acredita-se que sete pessoas estejam envolvidas na organização criminosa.
As investigações do MPE, a partir do seu núcleo de saúde do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco-Saúde), tiveram início em dezembro de 2016. Na ocasião, dirigentes do IPE-Saúde procuraram o MPE para informar sobre inconsistências encontradas na prestação de serviços de um laboratório de Soledade, município de mais de 31 mil habitantes.
Antes, uma denúncia havia chegado à ouvidoria do IPE. A partir disso, foram descobertos casos como o de uma paciente que teve 1.247 exames registrados em cerca de um ano no laboratório de Soledade. Seriam mais de 100 por mês.
No mesmo estabelecimento, houve caso de uma mulher com 827 procedimentos anotados em seu cartão em menos de 12 meses. E ainda foi desvelado um episódio de suposto paciente que teria feito exames preparatórios para sete transplantes diferentes — o que é incomum e custa caro. Um dos fatos que chamaram a atenção foi o de que o laboratório baseado em Soledade registrou serviços em nome de uma paciente que, no mesmo período, estava internada em Porto Alegre.
– A fraude era feita confiando na falta de fiscalização – afirma o promotor João Afonso Beltrame, coordenador do Gaeco-Saúde do MPE.
Os beneficiários do IPE-Saúde não sabiam da fraude, mas os seus nomes eram usados pelo laboratório de Soledade. O esquema funcionava da seguinte forma: até a descoberta do golpe, o cartão do usuário do plano de saúde do IPE com chip não era exigido na hora do atendimento. Para simplificar, os atendentes solicitavam as senhas de acesso dos beneficiários.
Uma vez de posse do passaporte, os laboratórios passavam a inserir no sistema nas semanas seguintes centenas de exames fantasmas, fazendo uso não autorizado das senhas obtidas e sem requisição médica. Todos esses procedimentos fraudulentos eram pagos pelo IPE.
Após a descoberta, o instituto editou, já em 2017, uma norma que obriga o beneficiário a apresentar o cartão com chip para a realização de exames. A senha apenas não é mais suficiente. Com isso, o MP acredita que o órgão estadual conseguiu estancar a sangria.
Dos oito mandados de busca e apreensão, quatro são cumpridos em Soledade. O dono do laboratório é o suspeito de ser o chefe do esquema local. Servidores também cumprem duas das ordens judiciais em Palmeira das Missões, onde fica uma empresa especializada em emitir as faturas a serem cobradas do IPE a partir de softwares de registro e contabilização de prestação de serviços.
Esse estabelecimento, acreditam os investigadores, seria o ponto de apoio de outros fraudadores. No município de Ibirapuitã, serão executados os dois últimos mandados, um deles numa filial do laboratório de Soledade.
Pelo menos três pessoas que tiveram os nomes usados indevidamente para o registro e cobrança por exames jamais feitos ingressaram na Justiça contra o laboratório, que teria se preocupado em fazer breves acordos que facilitassem a extinção dos processos. Os beneficiários não tinham custos extras gerados para si — eles lesavam apenas o IPE —, mas os seus nomes e senhas eram usados para a consumação dos golpes.
Já é possível afirmar que essa investida do MP configura apenas a primeira cena de uma operação que terá outros capítulos. A exemplo das sucessivas ações contra o leite adulterado, novas investidas contra clínicas que lesaram o IPE, dentro do mesmo esquema operacional, devem ser desveladas em futuras operações pelo Rio Grande do Sul.
– Com certeza, faremos um trabalho contínuo com casos coletados em outras cidades – explica o promotor Beltrame.
Em uma cidade cujo nome é mantido em sigilo, os investigadores apuram a ação de laboratório que teria fraudado cerca de 117 mil exames junto ao IPE. O montante é superior ao caso de Soledade em quase 100 mil requisições forjadas. Casos que ajudam a entender alguns dos motivos que levaram o IPE à beira da bancarrota.
Somente 2015, o Fundo de Assistência à Saúde, que custeia todas operações médicas e hospitalares do IPE, registrou déficit de R$ 107,3 milhões. O resultado demonstra que a arrecadação do plano está em nível inferior aos custos, o que é agravado por fraudes como a descoberta em Soledade.
– Fraudes em entes públicos auxiliam para que eles não tenham recursos suficientes para prestar um serviço adequado – avalia o promotor Beltrame.